"Perguntais-me como me tornei louco.
Aconteceu assim:
Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um sono profundo e notei que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas – as sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em sete vidas – e corri sem máscara pelas ruas cheias de gente, gritando:
– Ladrões, ladrões, malditos ladrões!
Homens e mulheres riram de mim e alguns correram para casa, com medo de mim. E quando cheguei à praça do mercado, um garoto trepado no telhado de uma casa gritou:– É um louco!
Olhei para cima para vê-lo.
O sol beijou pela primeira vez minha face nua. Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não desejei mais minhas máscaras. E, como num transe, gritei:
– Benditos, benditos os ladrões que roubaram minhas máscaras!
Assim me tornei louco. E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: e a segurança de não ser compreendido, pois aquele desigual que nos compreende escraviza alguma coisa em nós."
Khalil Gibran
Um magnífico texto sobre a loucura. Uma loucura lúcida e eloquente. O texto de Khalil Gibran é autoexplicativo e possui inúmeros simbolismos e significados que você, ao ter lido, já deve ter percebido e interpretado em algum nível.
Arrisco-me a traçar alguns rabiscos rasos em torno desta obra, pois algo mais aprofundado poderia suscitar uma limitação interpretativa em demasia sobre a riqueza e grandeza deste texto que não só deve ser lido, mas sentido e imaginado.
O que seria o sono profundo ao qual a personagem diz ter despertado?
Máscaras? Alguma relação com "papéis sociais", teatralidade nas relações, superfície em detrimento da natureza?
Vejam só, alguns riram e outros ficaram com medo da atitude "incomum" adotada pela personagem após suas máscaras terem sido roubadas... o novo, o desconhecido realmente gera estranheza e, em algum momento... o outro avassaladoramente e inconscientemente invoca um rótulo: "é um louco"!
"O sol beijou pela primeira vez minha face nua [...]"
Ia continuar a rabiscar mais, mas como disse anteriormente, não acho justo significar esta obra para você. Decidi parar por aqui, pois lembrei que "aquele desigual que nos compreende escraviza alguma coisa em nós".
"É porque compreensão intelectual é destrutiva. Afinal de contas, compreender (comprehendere, em latim) significa 'apoderar-se', 'agarrar', correspondendo assim a um exercício de poder."
Marie-Louis Von Franz, Psicoterapia, p. 19
Espero que esse texto contribua de alguma forma para a sua vida. Um abraço e até a próxima,
Julio C. N. Ito
Psicólogo Clínico (CRP 06/130191)
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Você já se (re)visitou hoje?
(Foto por Julio Ito)
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