Entre Mundos e Lutos: Reflexões Psicológicas em ‘O Menino e a Garça’ de Hayao Miyazaki
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por Julio Ito
Psicólogo (CRP 06/130191)

Introdução

Antes de tudo, gostaria de dizer que neste artigo "Entre Mundos e Lutos: Reflexões Psicológicas em 'O Menino e a Garça' de Hayao Miyazaki" eu não pretendo esgotar os significados desta obra, pois como símbolos, os significados são múltiplos; e muito menos tenho a pretensão de dizer que estas reflexões psicológicas sejam as únicas possíveis. Elas vêm sendo “elaboradas” desde que eu assisti a este filme – há pouco menos de uma semana – , e venho compartilhá-las aqui com vocês, atravessado por vivências pessoais e pela psicologia complexa de C. G. Jung.

O leitor que me perdoe pelos possíveis spoilers (tentei resguardar ao máximo os "detalhes" do filme), mas preciso escrever. Estando claro que estas são algumas de minhas reflexões psicológicas a partir da obra “O menino e a Garça”, de Hayao Miyazaki com o Studio Ghibli, vamos tentar compreender essa jornada entre mundos e lutos.

Contexto formal

Como contexto formal temos um belíssimo filme com uma trilha sonora impecável e que foi inspirado no livro “Como você vive?” (君たちはどう生きるか – kimitachi wa dou ikiru ka) de Genzaburo Yoshino. Este parece ser o último trabalho do grande Hayao Miyazaki, mesmo diretor de “A viagem de Chihiro”, “O Castelo Animado” e outros grandes clássicos da animação japonesa.

“O menino e a Garça” conta a história de Mahito, um jovem de 12 anos que, após perder a mãe num incêndio num hospital em Tokyo em meio à segunda Guerra Mundial, muda-se para uma cidade do interior com o pai e a nova madrasta.

Nesta nova casa, que possui um grande terreno, Mahito encontra uma garça-real que começa a se comunicar com ele. Sua madrasta desaparece misteriosamente e todos que habitam o lugar saem em sua busca. É aí que Mahito, acompanhado de uma vovozinha (ばあちゃん - baachan), tem um novo encontro com a garça-real. O chão começa a sugá-los como uma espécie de areia movediça e, sua jornada em um mundo que, topograficamente, fica abaixo do seu mundo, se inicia.

Contexto psicológico: entre mundos e lutos

Neste tópico, adentrarei no contexto psicológico desta obra. Em boa parte do filme, assim como em outras obras do Studio Ghibli, a história se passa no que popularmente chamamos de “mundo da fantasia”. Psicologicamente, as cenas e as personagens e conteúdos deste mundo fantástico seriam representantes simbólicos do que estaria rolando no mundo interno do jovem Mahito.

Aqui vem a chave psicológica para se compreender esta obra que mescla “o mundo da realidade externa” com “o mundo da fantasia”: o pano de fundo psíquico do filme é o processo de elaboração do luto que Mahito está fazendo pela perda de sua mãe. E é por aqui que pretendo continuar o texto "Entre Mundos e Lutos: Reflexões Psicológicas em 'O Menino e a Garça' de Hayao Miyazaki".

Em termos psicológicos, a cena em que os três são sugados pelo chão, representa um aprofundamento, um rebaixamento do nível da consciência para a entrada no inconsciente, um direcionamento mais intenso da energia psíquica para baixo rumo ao inconsciente, ou em termos populares, um processo de depressão (pressão para dentro): algo totalmente natural diante de uma perda significativa. Este é um processo que os gregos descreviam como a katábasis: a descida ao mundo das trevas, ao mundo de Hades (Plutão para os romanos que é o deus das riquezas, pois é lá embaixo, nas profundezas que elas estão, sacou?).

Vemos algumas cenas em que os dois mundos, o da realidade externa e o da realidade interna, se comunicam brevemente, o que nos dá indícios desta metabolização do processo de luto. A coisa é assim mesmo: vem pra dentro e vai pra fora, depois fica mais pra dentro, depois sai de novo… é um processo de idas e vindas: mundos e lutos.

A garça, como muitos outros animais, pode ser contemplada no filme como um psicopompo: na psicologia junguiana, esta figura é o guia da alma, uma imagem psíquica que faz a intermediação da consciência com o inconsciente, levando e trazendo mensagens do nosso mundo interior mais profundo. Tanto é assim que é a garça-real que dá a cutucada inicial para a jornada interior do nosso protagonista.

Após enfrentar uma série de obstáculos e mutações interiores, no final da história, Mahito diz que não vai dar continuidade neste “mundo fantástico” que o seu tio-trisavô criou (sobre esse tio-trisavô: ocultei essa parte da história para não dar spoilers em demasia) porque quer fazer amizades, como havia feito neste mundo interno, agora no mundo da realidade externa. Ou seja, em termos psicológicos, ele sabe que não pode viver no mundo da “fantasia” pra sempre (que certamente também tem seu valor, vide a elaboração de seu luto).

Feita essa elaboração de luto da perda da sua mãe (e de quebra um pouco da sua história familiar), nosso protagonista estaria pronto para voltar com a progressão da sua vida no mundo externo, pois agora, psicologicamente entrou em harmonia consigo mesmo.

Algumas reflexões psicológicas

O que mais me chamou a atenção nesta obra, são os temas que foram trazidos à tona nesta época em que vivemos. Perceba que são conteúdos que não são dominantes do tempo em que vivemos (Zeitgeist), ou seja, não são do senso-comum da época que estamos inseridos. O que a nossa época diz? "Quadruplique sua produtividade", “Abra sua empresa e expanda seus negócios”, “Aprenda comigo em apenas 5 dias a criar a rotina que irá mudar a sua vida”, "Seja o seu próprio patrão", E por aí vai... são imperativos da ordem da expansão, da autoexploração, da pressa, da rapidez, do “crescer rápido”, do desempenho, da performance, do faça tudo você mesmo porque você pode tudo etc. Trazendo uma ilusão de que realmente a pessoa pode tudo e que se ela não conseguir com rapidez e produtividade é porque ela é ruim ou preguiçosa ou incapaz etc., intensificando assim sentimentos de culpa e autorrecriminação que acabam por esgotar psiquicamente o indivíduo. Perceba que é uma cultura que nos estimula a fazer coisas o tempo inteiro.

Lembro-me das observações de Jung (2013) acerca das obras de arte: algumas delas trazem à tona atributos que estão faltando na sociedade atual. Elas possuem um caráter compensatório para a consciência/comportamentos unilaterais de uma determinada época.

Acompanhe comigo: estamos falando neste filme de um luto de mais ou menos dois anos que Mahito precisou fazer (há uma fala dizendo que, após dois anos, Mahito e sua família retornaram à grande Tokyo, e assim associei este tempo de dois anos aproximadamente como sendo o tempo da duração da elaboração do luto do nosso jovem protagonista). Perceba que hoje o sujeito se horroriza ao saber que um evento emocional pode durar esse tempo (que pra ele é muito tempo, pois tem pressa pra tudo) e acaba sucumbindo a esses imperativos coletivos de promessas de uma cura rápida com aumento de produtividade e como sendo indolor. O que não dizem é que esse tipo de recurso além de ser superficial, vai fazer doer muito mais lá pra frente, enfraquecendo o próprio indivíduo. É como se você quisesse digerir uma grande feijoada em 5 minutos. Coisa boa não vai dar. "A alma precisa de tempo", como diz o título de um livro de Verena Kast.

Conclusão

Resgato aqui, neste tópico final, o filósofo contemporâneo, Byung Chul-Han (2022, p. 22) que afirma que “as práticas que demandam dedicação de tempo prolongada estão desaparecendo hoje em dia (...)”. Mais uma vez apontando para a carência da nossa sociedade atual.

Essas foram algumas das reflexões que me ocorreram ao sair da sala de cinema e que continuei digerindo por alguns dias até escrever este texto. Espero ter conseguido demonstrar, através destas reflexões psicológicas em 'O Menino e a Garça' de Hayao Miyazaki, uma possível perspectiva entre mundos e lutos.

E aí, você também sente essa pressa em digerir as coisas da vida que exigem mais tempo? Comente aí suas impressões e me deixe saber. Espero que esse texto possa contribuir de algum modo para a sua vida, um abraço.


Referências

HAN, B-C. Não-coisas: reviravoltas do mundo da vida. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022.
JUNG, C. G. O espírito na arte e na ciência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. (Obras completas de C. G. Jung, v. 15)

Veja também:

O cuidador de tristezas

Em defesa de uma certa tristeza (vídeo)

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JULIO ITO
Psicólogo (CRP 06/130191), psicoterapeuta junguiano, músico, facilitador de workshops, pesquisador e professor convidado do curso de Pós-graduação em Teoria e Prática Junguiana do Instituto Solaris (RJ).

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3 thoughts on “Entre Mundos e Lutos: Reflexões Psicológicas em ‘O Menino e a Garça’ de Hayao Miyazaki

  1. Ótima reflexão! Estou querendo escrever um artigo sobre o tema e seu texto contribuirá bastante! Inclusive estou pesquisando Carl Jung e o espirito do tempo! Agradeço pela ideias, com certeza vou te citar! Se voce tiver algum contato para que possamos dialogar mais, seria muito bom!

    Att.,
    Paulo.

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