Há alguns dias atrás, observei o movimento de uma feira de domingo que se realizava no momento em que eu passava por determinada rua. Estava acontecendo tudo o que em uma feira geralmente acontece, porém, após passar por ela, uma imagem estimulou meu pensamento: haviam duas mulheres de meia idade conversando e, uma delas, segurava duas coleiras às quais se encontravam dois cachorros que estavam tranquilamente sentados no chão, apenas observando todo aquele movimento, assim como eu.
Surgiu daí uma inquietação e pude, depois de refletir a respeito, entender o porquê. Lembrei-me de algo. O que geralmente acontece quando dois cães se encontram no meio do rua? É uma festa! Uma festa de impulsos alegres em que duas almas livres celebram euforicamente o encontro do desconhecido, do novo. Entendi então a razão de ter achado estranho ver dois cães sentados um do lado do outro sem festejarem mutuamente a presença um do outro. Ora, mentes mais racionais irão dizer que meu raciocínio é equivocado por pensar que dois cães sempre irão festejar ao se encontrarem ou argumentarão dizendo que eu não considerei que os dois cães, por provavelmente serem da mesma dona, já estão acostumados um com o outro e que, por isso, não há nenhuma novidade um no outro ou ainda invocarão mais uma série de outros argumentos. Mas é importante salientar desde já que não é nesse ponto que irei desenvolver o meu texto. Fiz apenas uma introdução para contextualizar a origem do que está escrito abaixo.
Voltando à celebração eufórica das almas livres desconhecidas que se encontram, lembrei-me na hora de um trecho da obra O Homem e seus Símbolos. Jung (2008, p. 31) resgata o conceito de misoneísmo, explicando que o ser humano reage com “um medo profundo e supersticioso do novo” e com “medo e ódio irracionais de ideias novas” (p. 35). Por que temos tanto medo e aversão às mudanças? Ou ainda, por que, quando se olha para o diferente, tenta-se afastá-lo ou rejeitá-lo? Todos esses pensamentos e comportamentos são limitadores e prejudiciais para o diálogo, inclusão e bem-estar. Logo me ocorreu que “diante do novo e do desconhecido, devemos ser como crianças”.
Como símbolo, a criança está constantemente cheia de vida e tudo que é novo para ela faz seus olhos brilharem de curiosidade e interesse; ela não faz julgamentos, não teme ser julgada, ainda não construiu preconceitos (pelo fato de justamente não julgar); ainda não ouviu que “x coisa é menino que faz” e “y coisa é a menina que faz”; deseja se desenvolver; entre outros movimentos e características que podem ser expressões do que se pode chamar de “abertura às experiências”.
Sobre o arquétipo da criança, Jung (2000) explica que ele possui um impulso natural à autorrealização com a função de integrar elementos conscientes e inconscientes, buscando assim a união dos opostos; a totalidade.
"No adulto está oculta uma criança, uma criança eterna, algo ainda em formação e que jamais estará terminado, algo que precisará de cuidado permanente, de atenção e de educação. Esta é a parte da personalidade humana que deveria desenvolver-se até alcançar a totalidade." (Jung, 1981, p. 181)
Amplifica-se assim a consciência e transforma-se a personalidade, ou seja, temos sempre a oportunidade de sair de uma unilateralidade que caminha em direção ao mal-estar e ao adoecer.
Então, como podemos nos tornar mais abertos às experiências?
Ouvir e procurar opiniões diferentes das nossas; receber o desconhecido e o diferente: observar, dialogar, oferecer espaço, acolher, questionar, entender. Mesmo que com essa nova postura continuemos a não concordar com o "novo, estranho e desconhecido", ao menos ratificamos com a experiência em detrimento do pré julgamento e ampliamos a nossa visão de mundo com novos elementos. É muito fácil estarmos cercados de ideias às quais acreditamos veemente e de pessoas às quais já estamos familiarizados(as). Essa conduta contribui para o fenômeno da polarização, que aos poucos cria uma bolha social (talvez você já esteja em uma e não tenha percebido), onde o seu mundo é percebido por você como o mundo certo e “o outro" é percebido como "estranho e desconhecido” sendo que, este último deve ser fervorosamente combatido e eliminado a todo custo. Imagine essa polarização acontecendo num fato pessoal isolado. Agora imagine-a acontecendo num evento envolvendo diversas pessoas em grandes proporções.
Espero que esse texto contribua de alguma forma para a sua vida. Um abraço e até a próxima,
Julio C. N. Ito Psicólogo Clínico (CRP 06/130191) — Você já se (re)visitou hoje?
(Foto por Julio C. N. Ito) Referências
JUNG, C. G. O desenvolvimento da personalidade. OC XVII. Petrópolis: Vozes, 1981.
________. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. OC IX/1. Petrópolis: Vozes, 2000.
________. O homem e seus símbolos. 2.ed.especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
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