E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e lhe dissesse: "Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem — e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente — e você como ela, partícula da poeira! — Você não se prostraria na poeira e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: "Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!". Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, "Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não 'desejar nada além dessa última, eterna confirmação chancelada'?
(Nietzsche, Gaia Ciência, §341)
Empregando uma auto-observação atenta, podemos perceber, que diante dos diversos eventos que a vida constela, que alguns deles possuem o mesmo modus operandi, porém, o que muda, são seus pormenores:
- “Estou exausto… sempre que vou tentar algo novo, o negócio dá errado…"
- “Já me passaram ‘a perna’ inúmeras vezes, estou farta!”
- “Não sei mais o que acontece… em todo relacionamento dizem que sou pegajosa demais.”
- “Sonhei que, durante uma reunião em uma mansão, um grupo de executivos me jogavam numa piscina cuja água está toda enlamaçada.”
- “Percebi que figuras de autoridade me inibem a ponto de eu não conseguir me expressar…”
Evidentemente cada situação é diferente, porém, o que elas tem em comum talvez seja a recorrência.
Sonhos com diferentes personagens, porém, com a mesma temática.
Devaneios e fantasias repetidos.
Padrões que comprometem a nossa qualidade de vida.
Em tais relatos é possível identificar que existem repetições — que provavelmente não foram elaboradas durante a vivência originária. Repetimos sem saber que o estamos fazendo — até que alguém nos aponte ou tenhamos um lampejo de insight.
Compulsão à repetição
Nesse sentido, Freud (1914/1980) observa que uma compulsão à repetição é intrínseca à constituição psíquica do ser humano que “[...] não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo” (p. 196).
Repetimos sem o saber e repetimos através de ações, pois tais conteúdos nos são inconscientes; desconhecidos; incompatíveis com a consciência. É como se vivêssemos no automático. É uma forma de nossa psique nos lembrar, já que conscientemente não o conseguimos.
O que é que a gente repete?
Repetimos nossas inibições, nossas atitudes disfuncionais, nossos sintomas (Freud 1914/1980).
Em paralelo, Jung (1934/2011, §201) contribuiu com este tema e foi um dos estudiosos responsável pelo emprego do termo complexo:
"O que é, portanto, cientificamente falando, um 'complexo afetivo'? É a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional e, além disso, incompatível com as disposições ou atitude habitual da consciência. Esta imagem é dotada de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia, vale dizer: está sujeita ao controle das disposições da consciência até um certo limite e, por isto, se comporta, na esfera do consciente, como um corpus alienum corpo estranho, animado de vida própria."
Cada complexo possui autonomia psíquica, portanto, quando ele é ativado, não é passível de ser controlado pela vontade consciente. O complexo é uma personalidade parcial. Em termos gerais, quando nos encontramos numa situação “parecida” com a situação originária que "gerou" um complexo, este último é ativado e então nos tornamos reféns dele. Nós não temos os complexos; eles nos tem.
A visão prospectiva Junguiana
Se Freud e Jung explicam os motivos pelos quais nós repetimos, Gustavo Barcellos, em seu livro Psique e Imagem (2012, p. 86) reforça a visão prospectiva junguiana no tema da repetição: existe uma finalidade nisso tudo.
"Circular, a alma repete-se infinitamente, e na repetição está uma tentativa de aprofundamento. A alma volta constantemente às suas feridas para extrair dela novos significados. Volta em busca de uma experiência renovada."
A nossa alma (ou psique, termo grego), a todo momento repete padrões numa tentativa de “cura”, de refinamento, de aprofundamento, de elaboração destes. Nós não repetimos somente porque as vivências primárias não foram elaboradas; repetimos também para que possamos nos conscientizar dessas vivências e assim, como uma oportunidade, como uma chance a mais, buscar elaborá-las.
Elaborar é uma das palavras mais importantes para a Psicologia. A elaboração vem da combinação de outras duas palavras: ex-: fora + laborare: trabalhar, cultivar.
O processo de elaboração contempla a (re)organização, (re)significação, compreensão, modificação, aprofundamento, sofisticação, aprimoramento e finalmente transformação através do trabalho, do cultivo. É um processo de refinamento gradual da matéria prima; aprimoramento do próprio ser, como aquele que esculpe a si mesmo.
Espero que esse texto contribua de alguma forma para a sua vida. Um abraço e até a próxima,
Julio Ito
Psicólogo Clínico (CRP 06/130191)
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(Foto por João Pedro Chain)
Referências
Barcellos, G. (2012). Psique e imagem: estudos de psicologia arquetípica. Petrópolis: Vozes.
Freud, S. (1980). Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise II). In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 191-203). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914)
Jung, C. G. (2011). Considerações gerais sobre a teoria dos complexos. In: A natureza da psique. Petrópolis: Vozes. v. 8/2. (Trabalho original publicado em 1934)
Nietzsche, F. (2001). A Gaia Ciência. Trad. Notas e Posfácio de Paulo C. de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras.
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