O PROCESSO DE TORNAR-SE SI MESMO ATRAVÉS DO SKATE: RODNEY MULLEN E MEUS DEVANEIOS PSICOLÓGICOS
Julio Ito, psicólogo
por Julio Ito
Psicólogo (CRP 06/130191)

Gostaria neste ensaio de fazer uma breve e devaneica (essa palavra existe?) exposição de alguns devaneios psicológicos inspirados na psicologia analítica de C. G. Jung, mais precisamente acerca do processo de tornar-se si mesmo através do skate, que me ocorreram enquanto assistia a uma palestra do TED Talks – uma série de conferências realizadas ao redor do mundo, cujo slogan é “ideias que valem a pena compartilhar” – com o título de “Pop an ollie and innovate!” (TED, 2015), proferida pela lendário skatista Rodney Mullen. Mas antes de continuarmos, sinto que seja importante também dizer o que, de forma alguma, não pretendo fazer: analisar a personalidade de uma pessoa que nunca troquei uma palavra sequer. E ainda advirto: se você, estimado(a) leitor(a) procura (mesmo que secretamente) por uma rigidez e rigor acadêmicos, este ensaio de devaneios definitivamente não é pra você. Portanto, se você escolheu prosseguir, desejo que a sua viagem seja tão boa quanto a que rolou em mim enquanto desdobrava essas percepções.

Para quem não sabe quem é Rodney Mullen, foi ele quem praticamente abriu os caminhos para a maioria das manobras e estilos de andar de skate que conhecemos hoje, tanto que ele é conhecido pela comunidade dos skatistas como "Godfather of Street Skateboarding" (O Padrinho do Skate Street).

Já me chamou a atenção o início de sua palestra quando Mullen fala sobre o seu primeiro contato com o skate aos 10 anos de idade: “Quando eu era criança, cresci numa fazenda na Flórida e fiz o que a maioria das crianças faz... joguei um pouco de beisebol, fiz umas outras coisas do tipo, mas eu sempre tive a sensação de ser um ‘outsider’”. Aqui, propositalmente preferi pela não tradução da palavra ‘outsider’, pois penso que assim perderíamos menos o sentido original da palavra do que se a tivesse traduzido (assim como costuma ocorrer em toda tradução). Um outsider pode ser entendido aqui como uma pessoa “fora dos padrões”, no sentido de que não se sente inserida em um grupo ou um lugar específico, sentindo-se uma intrusa que, psicologicamente, leva-nos para uma sensação ambígua por excelência: a maldição de não pertencer a um lugar e, ao mesmo tempo, a benção de não pertencer a um lugar, libertando o sujeito para poder trilhar um caminho diferente (único, talvez) daquele já convencionalmente estabelecido e tudo isso de acordo com as potencialidades de cada um.

Continuando seu discurso, percebi uma conexão interior muito forte com seus afetos, coisa típica de crianças saudáveis:

“(...) até que eu vi umas fotos em revistas em que uns caras andavam de skate, e pensei: uau! Isso é para mim!”

Neste trecho, Mullen sofre um espanto positivo: é como se ele tivesse encontrado algo muito precioso, mas que não sabia que estava procurando. “Quantos de nós, já adultos, nos permitimos tais espantos, tais ‘afetações’?”, penso comigo. Aqueles que um dia, que seja por um instante, conseguiram algum tipo de conexão com o si-mesmo (selbst, self, núcleo da personalidade total para a psicologia de C. G. Jung), certamente já usufruíram de uma espécie de renovação da alma, como se aquela experiência trouxesse mais vitalidade, enriquecendo a própria personalidade. A experiência e o contato com o centro da psique propiciam este tipo de sensação e, na minha humilde experiência, isso não tem a ver com um “ver para crer” ou “estudar para saber”, mas sim com um “sentir para constatar” a experiência em si ou “passar por” essa experiência. Tem coisas que só aprendemos ou validamos quando as atravessamos. “Mestre é aquele que, de repente, aprende”, disse o poeta Guimarães Rosa.

Mullen segue descrevendo as razões pelas quais ele acredita ter se encantado pelo skate: “Porque não havia um treinador em cima te direcionando e, esses caras [skatistas], estavam apenas sendo eles mesmos. Não havia um oponente diretamente contra você. E eu amava essa sensação, então comecei a andar de skate”. Note que aqui nesta fala há preferências pessoais - talvez inclinações naturais, talvez resultantes de vivências, talvez uma combinação das duas coisas – em relação a uma atividade humana. Questões como competitividade, cobranças e uma busca pela espontaneidade (“ser si mesmo”) aparecem em seu discurso. A espontaneidade é, sem dúvida nenhuma, um dos requisitos imprescindíveis para ir em direção ao processo de tornar-se si mesmo: o processo de individuação. Sem uma mínima conexão com o self, com o centro da psique, com o núcleo da alma, é impossível se viabilizar este processo. Ou seja, não tem a ver com recebermos uma receita de fora sobre o que é tornar-se si mesmo e seguir estes passos, pois para cada sujeito, há um conjunto único e singular de potencialidades a serem desenvolvidas e, do mesmo modo, um conjunto único e singular de limitações. Penso em um dos sintomas contemporâneos: todos tem a fórmula mágica para o seu sucesso e parecem saber o que estão fazendo o tempo inteiro. Mas uma coisa eu questiono: se nem você sabe o que é melhor pra você, como é que, alguém que não está na sua pele, poderia facilmente saber o que é o melhor e o que vai dar certo pra você? É como se o de fora fosse dotado de uma capacidade no mínimo divina. Note também aqui, estimado leitor(a), que eu usei a expressão “ir em direção a”, pois o processo de tornar-se quem se é, é uma busca contínua e não um ponto em que se chega e cristaliza-se como um diamante. Diamantes também quebram.

Em relação ao processo de individuação, vale sempre (re)lembrar: não se trata de individualidade no sentido egocêntrico/individualista, mas sim de um desenvolvimento tal qual o indivíduo torna-se o ser único que é, manifestando sua “singularidade mais íntima, última e incomparável” dentro de uma sociedade (JUNG, 2017, para. 266). Importante notar aqui que Jung não separa o indivíduo único e singular da camada coletiva social, ou seja, este processo inclui o indivíduo ser ele mesmo numa conjunta participação com a sociedade. Caso contrário, voltaríamos ao simples, fácil, pobre e infantil egocentrismo inflacionado (“I’m the best, fuck the rest”). Não é disso que se trata (embora o contexto que vivemos estimule a isso).

O processo de individuação observado por Jung, pode se manifestar através de uma infinidade de meios: a criatividade é o limite. É uma capacidade por assim dizer arquetípica, ou seja, está dada como potencialidade para toda a alma humana. O que não quer dizer que todos, em strictu sensu*, entrarão de fato num processo de individuação, pois este, embora seja uma potencialidade, depende de fatores internos e também de condições externas (ambiente físico, relacional, emocional etc.). Um rápido exemplo: uma semente que abriga o potencial de se tornar uma árvore de Ipês amarelos, jamais conseguirá se realizar caso as condições do solo e de nutrição deste sejam precárias. Ela pode até dar florações, mas isso não quer dizer uma realização mais plena. Assim como um solo com condições ideais e de nutrição rica não garante o desenvolvimento próspero de uma semente, pois o resultado é derivado de uma combinação/interação de ambas dimensões: interna e externa.

Nota*: as compreensões sobre o processo de individuação descrito por Jung variam de acordo com os autores e escolas da Psicologia Analítica. Faço aqui uma breve menção das três escolas predominantes com alguns autores destas escolas: Escola Clássica (Jung, Von Franz etc.), Desenvolvimentista (Escola inglesa de Michel Fordham, Erich Neumann etc.), Arquetípica (James Hillman, Rafael López-Pedraza etc.). Neste artigo uso a expressão “strictu sensu” para me referir à concepção clássica do processo de individuação.

Receio que, para o público não familiarizado com a psicologia de Jung, isso que irei descrever seja de fato contraintuitivo ou possa soar estranho, mas como um eterno aprendiz da alma humana sei que algumas coisas podem soar estranhas mesmo no primeiro momento. Quando falo de criatividade, não me refiro às artes no geral, como se costuma se imaginar ao abordar esse tema. Quem me esclareceu essa ideia foram Jung e Winnicott: viver uma vida artisticamente criativa é diferente de viver uma vida criativa. Notem que, na primeira construção, a arte está relacionada diretamente à criatividade e vice-versa. Já na segunda, percebam como é possível a criatividade não estar associada à arte como a conhecemos. Ter uma vida criativa está então mais relacionado ao o que você faz com a sua vida (quais usos particulares/singulares você faz dos objetos físicos/psíquicos) e não a “que tipo de atividade artística” você executa. Inclusive considero que ao fazer um uso singular e único de um objeto você pode estar fazendo arte. Exemplo: depois de um dia de trabalho, você pode estar brincando com seus gatos e, de repente, inventar uma nova brincadeira que aguce ainda mais os instintos caçadores dos seus bichanos e admirar como eles ficaram mais satisfeitos com a brincadeira recém criada. Foi mais ou menos isso que Rodney Mullen fez: ao ver a modalidade freestyle, na qual foi campeão praticamente invicto (ganhou 35 dos 36 campeonatos que participara), morrendo aos poucos, viu-se obrigado a ir para o street, a modalidade emergente que viria a substituir o freestyle. E foi aí que Mullen, segundo suas palavras, sentiu que a sensação de liberdade foi restaurada porque antes ele estava vivendo de uma forma automática só "defendendo" (e se defendendo) seus títulos nas competições que participava e agora com o estilo freestyle morrendo, ele poderia criar coisas de novo e aí é que estava sua alegria de viver: colocar no mundo a sua criatividade e espontaneidade. Sua alma fluiu tão intensamente neste novo terreno ainda virgem de cultivo que ele conseguiu fazer desabrocharem as mais variadas espécies de plantas e flores (praticamente uma flora inédita) em forma de manobras novas no skate street. Interessante notar que toda sua vasta experiência anterior com o freestyle não foi perdida e nem apagada, mas sim transportada e transformada, o que o ajudou muito neste novo terreno que era o street, dando luz a manobras nunca antes imaginadas no skate.

Aí temos outra frase que novamente me remeteu ao processo de individuação, enquanto ele falava dos seus amigos:

“O que faz deles grandes [seus amigos skatistas] é o grau em que eles usam seus skates para se individualizar”.

Outra característica fundamental do processo de tornar-se si mesmo é a diferenciação. Diferenciação em relação ao coletivo, ao habitual, ao rotineiro, ao que já está estabelecido, a fim de agregar, a fim de ser você mesmo enquanto faz determinada coisa (e não só de ser diferente). Não confundir com a síndrome do adolescente que quer parecer kool. Essa é só uma das fases da vida que, se bem vivida e elaborada, passa. Nota: preocupar-se caso você ainda esteja nela. Brincadeiras à parte, poderia perguntar: qual é a chama única que esta pessoa tem a oferecer? Não precisamos ir tão fundo: basta lembrar que, neste contexto do skate, existem milhares de skatistas, porém, cada um, quando está andando de skate, ao mesmo tempo está expressando quem se é. Parece tudo muito bonito, mas na verdade, só é bonito nos livros. Parece que é só ir lá e fazer. Parece que é só se empenhar. Parece que é só ter disciplina. Tive essa primeira e tola impressão quando li a respeito. Depois de morrer muitas vezes (simbolicamente ok?) compreendi, num dos auges do meu sofrimento, que eu tinha entendido tudo errado. Faz parte. O processo inclui um ir e voltar que não é nada linear. O processo inclui você caminhar corajosa e medrosamente pelos Vales das Sombras, adentrando na noite escura da alma. Angústia. Dor. Sofrimento. Para aí sim realizar um alargamento da alma e talvez uma transformação. Mas voltando...

Mullen então não só se torna uma lenda no skate como também empreende desenvolvendo novas tecnologias para os equipamentos e administrando uma das maiores empresas do ramo do skate. Muitos outros fatos interessantíssimos de sua vida são narrados em outros vídeos e entrevistas disponíveis no próprio Youtube.

Ele diz que ao criar as novas manobras enquanto andava de skate, ele sentia ao mesmo tempo que também estava contribuindo com a comunidade dos skatistas. E de fato ele fez uma contribuição gigantesca, sem a qual, talvez mais da metade das manobras que vemos hoje não existiriam, pois são de sua criação ou derivadas dela. Mullen ao desenvolver e levar o skate a um novo patamar a partir do seu estilo próprio e único, ajudou e edificou toda a comunidade do skate com ele. Quando um indivíduo desenvolve seus potenciais respeitando sua natureza, ele, em maior ou menor grau, desenvolve junto a comunidade na qual participa. Essa é uma outra característica de quem está vivendo o processo de tornar-se si mesmo.

Eu penso aqui neste parágrafo final que eu poderia deixar este ensaio mais rico e amplo inserindo questões como o corte de classes sociais, a desigualdade brutal do nosso país, o corte de “raça”, a idade, o gênero, a cultura etc., mas creio que isso seria para uma tese de mestrado/doutorado o que, definitivamente, não é o propósito deste texto. No mas, Rodney Mullen se apresentou no meu imaginário com muitas conexões em relação ao processo de individuação descrito por C. G. Jung, o que não quer dizer que eu afirme que ele de fato o tenha “traçado” ou, para ser mais honesto intelectualmente, ao menos começado este longo, penoso, árduo e recompensador processo de tornar-se si mesmo. Portanto, leitor(a), não pegue pesado. São apenas devaneios psicológicos (levarei para meu/minha analista).

Espero que este, como todo outro texto que escrevi, de alguma forma, contribua para a sua vida.

Referências

JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. (Obras completas de C. G. Jung, v. 7/2).
TED. Rodney Mullen: Pop an ollie and innovate! YouTube, 2 fev. 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=3GVO-MfIl1Q>

Julio Ito, psicólogo
JULIO ITO
Psicólogo (CRP 06/130191), psicoterapeuta junguiano, músico, facilitador de workshops, pesquisador e professor convidado do curso de Pós-graduação em Teoria e Prática Junguiana do Instituto Solaris (RJ).

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2 thoughts on “O PROCESSO DE TORNAR-SE SI MESMO ATRAVÉS DO SKATE: RODNEY MULLEN E MEUS DEVANEIOS PSICOLÓGICOS

  1. Reflexões muito interessantes sobre o processo de individuação de cada um.
    O criativo de cada um, está conectado com a própria alma individual e também com o coletivo. Show!

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